A final de Paulo Futre e companhia
Faz hoje 30 anos, um super Benfica goleou o Boavistão de Manuel José por 5-2 na final da Taça de Portugal de 1992/93, naquela que o esquerdino do Montijo considera ter sido a sua melhor exibição.
É sempre injusto destacar um jogador desta forma quando é um coletivo que vai a jogo, mas é impossível deixar de realçar a portentosa exibição de Paulo Futre na final da Taça de Portugal de 1992/93: dois golos, uma assistência e um penalty sofrido em 90 minutos de constantes diabruras para os adversários.
O Boavista de Manuel José fica na história por ser um dos períodos mais fortes do clube do Bessa. Era o Boavista presidido pelo major Valentim Loureiro, sempre de língua afiada, que reuniu um grupo de excelentes jogadores e viu o seu Boavista ser uma presença constante nas provas da UEFA, além de ter conquistado vários troféus nacionais. E a Taça de Portugal parecia feita à medida das pretensões axadrezadas, uma vez que antes desta edição, o Boavista, que era o detentor do título, vencera as quatro finais que tinha disputado até então: em 1974/75, 1975/76, 1978/79 e 1991/92.
Mas na tarde de 10 de junho de 1993, dia de feriado nacional e da comemoração do 49.º aniversário do Estádio Nacional, o Boavista teve pela frente um Benfica ferido no orgulho por ter perdido o campeonato para o FC Porto. Com aquele que era unanimemente considerado o melhor plantel do futebol nacional, o Benfica ainda deu luta aos azuis e brancos, contudo não a suficiente para impedir que a equipa liderada pelo brasileiro Carlos Alberto Silva conquistasse o bicampeonato e se sagrasse um justo campeão.
A época começou mal para o Benfica, com Tomislav Ivic no comando técnico, mas acertou o passo quando Toni assumiu o leme. Em janeiro, o presidente Jorge de Brito reforçou o plantel com Paulo Futre, então considerado o melhor jogador português, saturado das constantes guerras com o presidente Jesús Gil y Gil no Atlético de Madrid. Quando o craque do Montijo estava prestes a assinar pelo Sporting, o presidente leonino Sousa Cintra deixou-se antecipar pelos encarnados muito por culpa da RTP, que adiantou verbas de direitos televisivos ao Benfica para financiar a operação, situação que até levou à demissão da administração da televisão pública.
Já a viver uma crise financeira, culminada no chamado Verão Quente, com as saídas de Paulo Sousa e Pacheco para o Sporting depois de rescindirem os seus contratos com as águias devido a salários em atraso, o Benfica apresentou-se no Jamor disposto a lutar por um título que lhe permitisse salvar a época após o falhanço no campeonato.
Num período anterior ao acórdão Bosman, Toni fez alinhar um onze com a curiosidade de só contar com portugueses do meio-campo para a frente. Os estrangeiros foram apenas os dois centrais brasileiros, William e Mozer, e o lateral esquerdo sueco, Stefan Schwarz. De fora da ficha do jogo ficaram, entre outros, os russos Kulkov, Mostovoi e Iuran, responsáveis por alguns episódios de indisciplina ao longo da época, sobretudo o rebelde avançado ucraniano.
Assente numa defesa a três, o Boavista era uma equipa caracterizada pela garra dos seus jogadores, muito acentuada no trio do meio-campo formado por Bobó, Tavares e Casaca, pelo acerto dos três defesas, com Rui Bento a desempenhar a função de líbero, e pela velocidade da dupla de ataque composta por Artur e Marlon - embora o melhor marcador da equipa nesta época tenha sido Ricky, com 16 golos -, sem esquecer as alas, neste jogo ocupadas por Paulo Sousa e Caetano.
O Benfica adiantou-se no marcador aos 32 minutos, por Vítor Paneira, depois de uma bela jogada coletiva. Logo de seguida, Futre arrancou até à linha e cruzou atrasado para João Pinto fazer o 2-0 num dos seus característicos golos de cabeça. Era o início de uma grande exibição do antigo número 10 colchonero, num jogo que nem lhe tinha começado por correr bem. Mesmo à beira do intervalo, uma falha de Mozer permitiu a Marlon - uma constante dor de cabeça para os encarnados - reduzir para 2-1 já de ângulo muito apertado. Foi com essa curta vantagem que o Benfica regressou ao balneário, sem fazer jus à exibição que fizera nos primeiros 45 minutos.
Se a primeira parte acabou com um golo do Boavista, a segunda começou com um golo do Benfica. E que golo! Um míssil disparado pelo pé esquerdo de Futre voltou a trazer algum conforto no marcador ao Benfica. Mas Tavares, que na época de 1994/95 rumaria à Luz na companhia de Nelo, tratou de voltar a colocar o resultado pela margem mínima. Na sequência de um pontapé de canto, Neno falhou na tentativa de socar a bola e o médio boavisteiro desferiu um remate indefensável. Que jogo!
Pouco depois, Futre tenta ultrapassar o guarda-redes Lemajic e é derrubado na área, não deixando alternativa ao árbitro Veiga Trigo a não ser assinalar penalty. No entanto, o guardião montenegrino, que fez esta tarde o seu último jogo pelo Boavista antes de rumar ao Sporting, redimiu-se e defendeu o remate de William. Mas não evitaria o 4-2 apontado por Futre: Paulo Sousa procurou a desmarcação do extremo canhoto que rematou cruzado e surpreendeu Garrido e Lemajic.
Manuel José respondeu e, citando Quinito, pôs a carne toda no assador. Ao intervalo já tinha colocado o goleador Ricky no lugar de Paulo Sousa, passando Casaca a fazer o lado direito axadrezado, e, após o segundo golo de Futre, tirou o lateral esquerdo Caetano para colocar Nélson Bertollazi, outro avançado, terminando o jogo numa espécie de 3-3-4. Tanto atrevimento permitiu aos encarnados chegarem à mão cheia de golos e fecharem o resultado nos 5-2, desta vez por Rui Águas na recarga a um livre de Schwarz que levou Lemajic a desviar a bola para o poste.
As cerca de 50 mil pessoas que encheram o Estádio Nacional assistiram depois à entrega do troféu por parte do Presidente da República Mário Soares ao capitão Veloso e os jornalistas puderam ouvir alguns dos intervenientes na partida, como o árbitro Veiga Trigo. «Já tomei o meu banho, estou a apanhar fresco. Tenho a consciência tranquila e sinto-me feliz pelo trabalho desenvolvido por mim e pelos meus colegas. Foi uma partida extraordinária, muito bem jogada, a demonstrar que o futebol português, quando é limpo, não pode temer confrontos com outros», comentou o conceituado árbitro alentejano. Quem não gostou muito da sua atuação foi o presidente do Boavista, que não ficou sem resposta: «Se o major Valentim Loureiro me considera um árbitro inteligente e habilidoso, só poderei dizer que sou mais inteligente a dirigir um desafio de futebol do que ele e a dirigir o o Boavista…»
O treinador do Boavista teve uma reação diferente do seu presidente e analisou a partida com fair play. «Uma equipa que marca dois golos numa final, normalmente leva a taça. Desta vez, isso não aconteceu e nem há que arranjar desculpas. O mérito é todo do Benfica, pelo que jogou e pelo apoio que teve, com uma moldura humana impressionante. Praticamente, foi como se jogássemos no Estádio da Luz. Um espetáculo de grande categoria. Futebol aberto de bom nível», disse Manuel José.
Já o técnico vencedor, depois de enaltecer a alegria que o troféu levaria a «mais de seis milhões de pessoas», apontou críticas ao que entendeu serem algumas incorreções por parte dos jornalistas. «Tenho uma folha A4 em casa onde estão apontados os jogadores que, desde há quatro ou cinco meses, são dados como certos no Benfica. Desde o trem da Linha de Sintra [referindo-se a El Tren Valencia] a um grego, Dimi não-sei-quantos, até um Ferdinand, tem sido um fartote. Quando me desloquei a Inglaterra foi para observar Armstrong [Chris Armstrong, então no Crystal Palace] e não Ferdinand. Neste tiro ao alvo poderão acertar nalgum… Outro aspeto que tem sido focado é o das rescisões de jogadores valiosos, com bons contratos. Ainda não estamos na República das Bananas e no dia 19 de julho teremos o plantel definido», defendeu Toni em declarações publicadas no jornal A Bola. Não seria bem assim, como a história diria.