Acúrcio: golo de baliza a baliza, lesão e... multa
A última jornada do campeonato nacional de 1957/58 já era especial por decidir o título, mas foi ainda mais por se assistir a um golo insólito, até então nunca visto no futebol português.
Natural de Oeiras, jogava em Moçambique, no Ferroviário de Lourenço Marques, à baliza no futebol e ao ataque no hóquei em patins, quando o FC Porto, em 1955, o convenceu a deixar aquela província ultramarina, como então se denominavam as colónias, para regressar à Metrópole, ou seja, a Portugal continental. Eram tempos hoje inimagináveis, quando os jogadores eram verdadeiros atletas, no sentido de se dedicarem a mais do que uma modalidade. E Acúrcio destacava-se nas suas duas paixões, ao ponto de ser internacional em ambas.

Foi campeão logo na primeira época no futebol nacional e, em 1957/58, chegava à derradeira jornada com hipóteses de repetir o título. Possibilidades remotas, diga-se. Para que tal acontecesse, o FC Porto teria de vencer o Belenenses no Restelo e o Sporting, que liderava em igualdade pontual com os portistas mas com vantagem no confronto direto, teria de perder pontos em Alvalade, na receção ao Caldas. Os leões venceram por 3-0 e garantiram o título, de nada valendo o triunfo do FC Porto sobre o Belenenses por 3-1. Mas esse jogo no Restelo entraria na história de Acúrcio e do futebol português.
Aos 12 minutos, quando já ganhava 1-0 depois de um autogolo de Paz, o guardião portista marcou um pontapé de baliza na direção do colega Virgílio, que lhe devolveu a bola. Depois de a agarrar – sim, neste tempo, e até 1992, era possível agarrar uma bola passada pelo pé de um colega de equipa –, Acúrcio «deu uns passos com a bola e lançou o habitual pontapé comprido com que os guarda-redes a colocam no ataque», segundo o jornalista Rebelo de Carvalho, de A Bola. Até aqui nada de novo. Mas, «ajudado pelo vento, o esférico tomou grande alcance; José Pereira saiu mal, consentindo o ressalto e… o golo!», descreve o mesmo jornal desportivo. Foi a primeira vez que se assistiu a um golo destes na principal divisão nacional, um momento tão raro e insólito que motivou protestos e levantou dúvidas entre os presentes. Uma vez mais recorrendo à crónica do jogo, o jornalista Ribeiro dos Reis confirmou a legalidade do lance, que deixou o Restelo perplexo. «Durante algum tempo ouviram-se imprecações contra o árbitro, a eterna vítima, e durante o intervalo as discussões e os comentários que surgiram demonstraram com clareza a ignorância que infelizmente ainda lavra, entre nós, em matéria das Leis do Jogo», criticou. E recorreu a elas para confirmar a decisão acertada do árbitro Álvaro Rodrigues, de Coimbra. «É necessário que a bola saia primeiro da área, e só depois pode ser lançada novamente para dentro da área, para as mãos do guarda-redes. O lance que a seguir for feito pelo guarda-redes, desde que as condições de execução do pontapé de baliza tenham sido regulares, é um lance normal de jogo como qualquer outro, visto que o guarda-redes pode utilizar as mãos dentro da área da grande penalidade e fazer depois o despacho com um dos pés. Não costuma resultar golo, dum lance desta natureza. Resultou ontem, por infelicidade de José Pereira. Mas, desse facto, não devem ser atribuídas culpas ao pobre árbitro…», justificou.
Já o guardião dos azuis do Restelo, o mítico Pássaro Azul, que seria o dono da baliza nacional no Mundial de 1966, sacudiu qualquer culpa no golo e valorizou a ação do guarda-redes portista. «A meu ver, não tive culpa no golo que Acúrcio me marcou. Houve, realmente, mérito do meu colega do FC Porto que bateu forte a bola sobre a defesa belenense. Eu vi que Paz estava batido pelo ressalto da bola e avancei dois passos. O esférico bateu no terreno e traiu-me. Não tive culpa nisto!», argumentou.
O FC Porto ainda chegou ao 3-0 no Restelo por intermédio de José Maria Pedroto – esse mesmo, o futuro célebre treinador –, e o melhor que o Belenenses conseguiu foi reduzir através de um golo de Vicente. Nessa altura, já Acúrcio estava em sofrimento. Ainda na primeira parte, o guarda-redes chocou com Matateu, a grande glória do emblema da Cruz de Cristo, e partiu um braço. Mesmo com dores, ficou em campo até ao final da partida, mas perderia toda a campanha do FC Porto na Taça de Portugal. A prova rainha era disputada no final da época, após o fim do campeonato, e nesse ano culminou com uma vitória do FC Porto por 1-0 diante do Benfica.

A montanha russa de emoções que Acúrcio viveu nesse jogo não terminaria aí. Depois da glória do golo, a dor da lesão. E o azar continuava à espreita, como contou, anos mais tarde: «No final do jogo, fui ter com o médico. As dores eram tantas que lhe disse que achava que tinha o braço partido. Ele virou-se para mim e disse-me que já sabia. Tinha ficado a saber no momento em que me assistira. Irritei-me, chamei-lhe veterinário… chamei-lhe tudo o que me lembrei. Por causa disso, não me pagaram o prémio da vitória. Ainda por cima tiraram-me dois contos do ordenado. Naquela altura ganhava dois contos e quinhentos. Não era mau, mas se lhe tirar os dois contos veja com quanto fiquei», contaria ao jornal A Bola, a 25 de novembro de 2006.
Acúrcio partiu a 9 de janeiro de 2010. Entre outros episódios, deixou-nos a memória deste jogo que teve um golo para a história, a dor de um braço partido e uma pesada multa para servir de emenda.